O que podemos aprender com o primeiro beijo gay entre homens na TV

Podia ter tido mais língua? Podia! Podia ter tido mais saliva, ter sido mais molhado, mais excitante? Podia. Mas, mesmo assim, mesmo estando mais pra um selinho que não provoca borboletas no estômago, e mesmo com toda a repercussão ter soado exagerada – afinal de contas, deveria ser algo normal, não é mesmo? Mesmo assim, o primeiro beijo gay exibido em horário nobre na maior emissora do Brasil tem sim motivos pra ser comemorado. Mesmo Félix e Niko sendo brancos, ricos e com alto grau de escolaridade e o tal beijo ter servido pra fechar o drama após uma declaração-de-amor-de-final-de-novela com os dois em uma casa linda e com filhos lindos e saudáveis, mesmo esse beijo não mostrando o que há por trás dos figurantes e casas cenográficas do Projac, mesmo esse beijo estando muito longe da nossa realidade, esse beijo é sim uma pequena vitória na luta contra a homofobia.

Sim, eu sei que é incômodo todo o burburinho que esse simples ato de afeto teve, a expectativa que se criou e até as campanhas para que ele finalmente acontecesse. Isso porque nas várias indagações a respeito discutia-se: “será que a família brasileira está preparada para o beijo gay?”, como se um gay fosse interromper o jantar da tal família brasileira e distribuir beijinhos em todos da mesa porque, fora essa situação hipotética, que porra a ~família brasileira~ tem a ver com um ato de amor entre duas (atenção que eu disse DUAS) pessoas? Parece até que a tal família brasileira se sente mais confortável com o ódio e violência do que com o amor. Afinal, são reproduzidas centenas de cenas de morte com direito a facadas e sangue em slow motion para valorizar o momento e ok, tudo bem as criancinhas assistirem a isso. Agora a celebração do amor entre dois seres humanos, isso sim é motivo de estardalhaço e preocupação com a moral e os bons costumes?

Pra mim, o papo é simples: não curte beijo gay? Ok, então não saia por aí beijando pessoas do mesmo sexo que o seu. Mas, escuta aqui, ninguém pediu a sua aprovação a respeito, então não seja intolerante e não queria forçar que as outras pessoas tenham a mesma visão que a sua. Simples assim. Na verdade, deveria ser simples, mas não é. No Brasil, a forma de preconceito que mais reina é a do preconceito velado, aquele em que a pessoa diz: “não sou homofóbico, tenho até amigos gays, MAS __________ (espaço no qual são vomitadas atrocidades preconceituosas)”. E é por isso que o tal beijo gay, apesar de ser comum pra mim e pra você que frequenta a Frei Caneca, o Baixo Augusta ou qualquer outro reduto gay, tem sim uma grande importância em escala nacional, por atingir pessoas que se dizem ok com a homossexualidade mas ainda acham uma demonstração de amor entre duas pessoas do mesmo sexo algo exótico, desnecessário ou ultrajante.

É inegável a influência que a Rede Globo exerce sobre a população. Um centro europeu de pesquisa levantou há cinco anos que “as mulheres que vivem em áreas cobertas pelo sinal da emissora apresentaram taxa de natalidade muito menor”. O motivo: por mais de três décadas, em 115 novelas, 72% das personagens femininas não tinham filhos. Outra pesquisa, feita pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento também apontou que “a parcela de mulheres que se divorciaram aumenta significativamente depois que o sinal da Globo se torna disponível”. A própria Globo acha que “Escalada”, de 1975, abriu um debate que levou à aprovação do divórcio no país, em 1977. É por conta dessa influência exercida pela Globo que um beijo gay sendo esfregado nos televisores de todo o país merece destaque. Meu coração esperançoso torce para que essa cena de fato ajude a ampliar o debate sobre a diversidade sexual e contribua para o fim do preconceito, da intolerância e dessa sociedade que quer impor o seu “modelo correto” de sexualidade, de “cura gay”, que condena moralmente quem não pensa como ela e na qual facções como skinheads agridem e muitas vezes matam uma pessoa por ela simplesmente querer ser quem ela é. Como aconteceu, recentemente, com dois jovens homossexuais que foram assassinados, vítimas de ódio e intolerância. Alguém aí já se esqueceu de como o adolescente Kaique Augusto Batista dos Santos, 17 anos, foi encontrado desfigurado e, quinze dias depois, Bruno Borges de Oliveira, 18 anos, foi espancado até a morte, também na região da Bela Vista, São Paulo?

A violência, os crimes de ódio e intolerância motivados por homofobia não surgem do nada. Anos e anos de repressão acabaram por introjetar um comportamento homofóbico na sociedade que é repetido diariamente e corrobora para que atos de violência como esses aconteçam. A cada “marica”, “bicha”, “viado” ou “boiola” que você solta como ofensa contra alguém, você está propagando a homofobia. Afinal, ser gay não é ofensa, ser bicha não é ofensa, ser viado não é ofensa. Usar esses termos para ofender os torna ofensa e reforça a ideia implícita de que ser gay ainda é considerado algo errado e vergonhoso. Se um ato “pequeno” como esse, de usar os termos citados acima como forma de ofensa reforça a homofobia, creio que o inverso também seja válido. Sendo assim, apesar de também ser algo “pequeno”, a cena do beijo gay tem um grande alcance, importante poder de sensibilização e contribui sim para ampliar o diálogo contra a homofobia.

Por isso acredito que, mesmo sendo exotificado, entre dois homens brancos, cisgêneros e de classe média, mesmo sabendo que a própria emissora que transmite o beijo gay de dois atores heterossexuais proíbe seus atores de assumirem sua homossexualidade pra não “manchar a imagem”, mesmo a cena tendo provocado um estardalhaço maior do que deveria, o beijo gay em horário nobre foi sim um passo na luta contra a homofobia. Foi simbólico, mas pode ajudar a mudar nossa cultura tão preconceituosa. Li, aliás, relatos mostrando como para algumas pessoas já mudou. E reforço esse pensamento ainda mais quando vejo a importância que teve para os próprios homossexuais que gritaram, choraram, vibraram, se emocionaram e se sentiram representados naquele finzinho de novela. Agora resta ansiar e lutar pelo momento em que o “beijo gay”, aquele entre duas pessoas que sentem afeto uma pela outra e se amam, vai passar a se chamar apenas beijo.

Via:  http://www.casalsemvergonha.com.br/

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